quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CENAS DO COTIDIANO ll


Na mesa de um bar (ao ar livre)
pensava eu na vida, quando o vi passar.
Nossos olhos se cruzaram por um instante
e vi uma tristeza tão grande...
Foi puro reflexo, sem que eu saiba o porquê, num
impulso o convidei para sentar-se à mesa comigo.
Ele olhou-me assustado, sem saber se devia, eu

insisti. Sorriu um sorriso amarelo e por fim decidiu-se;
sentou e me olhou esperando que eu dissesse algo.
Sem saber o que fazer, chamei o garçom e pedi dois

chopes. esse se aproximou com a cara emburrada e antes
que tivesse a chance de alguma contestação, voltei a pedir
com educação e firmeza que nos trouxesse dois chopes.
Ele saiu contrariado, mas calado, retornando com dois copos 

cheios em sua bandeja.
          Meu acompanhante pegou o copo, como quem não 

acreditasse no que via, sentiu o vidro gelado em suas mãos
com satisfação e tomou um longo primeiro gole.
Havia interrogação e exclamação em seu olhar naquele instante!
Por fim, olhou-me bem dentro dos olhos e perguntou: - Porque
me convidou? Não me conhece e tão pouco eu a conheço?
Eu disse, sem pensar: - Não sei dizer, sei apenas que me deu vontade

de tomar um chope com você. Ele então, pausadamente, começou a 
falar: - Sabe moça, faz tanto tempo que não sou convidado para nada
que fiquei sem saber o que fazer ou responder para você.
Antes, me convidavam o tempo todo, eu não dava conta de tantos

convites. Eram jantares, bailes, inaugurações, coquetéis e tantos outros
eventos...hoje, só me convidam a sair de onde eu tento entrar.
          Percebi seu linguajar, que se não primoroso, era um tanto quanto
correto, e surpreendeu-me quando tirou do bolso de seu paletó surrado
um lápis e um caderno (também surrado) e começou a escrever.
Escrevia enquanto conversávamos. Pedi mais dois chopes, que ele tomou 

com gosto. Quando terminou seu escrito, arrancou a folha do caderno, me
entregou-a e disse sorrindo seu sorriso amarelo: - Olha, aqui está uma poesia
que fiz para você. É a forma que tenho para agradecer o convite e o chope.
Agora preciso ir, tenho que conseguir comida para o meu melhor amigo.
Boa noite e muito obrigado por tudo.
Ele se foi seguido de um cãozinho magrelo e muito feio...abri o papel

dobrado e li:

RATO DE SARJETA

Nojo e medo
Vejo nos olhares

Dos que passam por mim
E desejam o meu fim

Louco me julgam

Sem direito a explicação
Se afastam ou me afastam
Me acostumei à solidão

Um amor não correspondido
Mergulhou-me na depressão
Destruiu-me os neurônios
sangrou-me o coração

Por covardia me entreguei

E da família me afastei
Ganhei a rua por moradia
Perdi a dignidade que eu tinha


Do amor nada mais soube
Da família me escondi
Da vida que eu vivi
Restou o terno que vesti


Tanto tempo se passou
Que nem lembrava mais quem fui
Acredite, sentado aqui nesta mesa

Esqueci por um instante que sou rato de sarjeta

Teu nome não perguntei
O meu também não falei
Mas deixo contigo a certeza
De que eu nunca te esquecerei

     João Ninguém

          Levantei, paguei a conta, enxuguei com um 

guardanapo uma lágrima saliente, guardei meu "papel"
na bolsa e fui para casa.

(Nane- 15/11/2017)


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