sábado, 22 de agosto de 2015

SENTIMENTOS DISTORCIDOS



Vim de tão longe
Sem saber o que me esperava
Além do amor
Ao qual me dediquei

Da janela olho 
Meu olhar vazio
Onde anda a prole
Que tanta rugas me custou

São tantos contratempos
Minha mãe se despediu
Mas eu não ouvi
E agora tento gritar adeus

Deus
Minha prole não escuta
E eu preciso ir
Antes do amanhecer

Meu olhar turvo não permite
Que eu veja essas coisas
E a cabeça gira sem rotação
Apenas por girar

Um leito feito prisão
Um pássaro ferido
E o longe tão perto
E o perto tão distante

Quem é quem nessa cidade
Mãe e filho, filho e mãe
Distorcidas imagens refletidas
No espelho da dignidade

Lá fora faz frio
É o que eu sinto aqui
Nem sei se estou dentro
Mas calor, só de vergonha

Dia e noite misturados
E eu nunca acerto a hora certa
Lágrimas e soro se misturam
É sal, é sol, é sul, sem norte

A janela é inalcançável
Talvez tenha uma lua lá fora
Ou quem sabe o sol brilhe
Mas não volto de onde vim

Lá longe minha mãe se foi
E eu nem a ouvi
Vou de encontro a ela
Bem mais velha do que era (ela)

A prole se cala
Talvez me abrace na despedida
O soro e a lágrima secaram
E sorrio livre

(Nane-22/08/2015)





terça-feira, 18 de agosto de 2015

POESIA SENTIDA



Adormece em mim
A poesia
Latente e em ebulição
Falando somente à mim

Palavras não ditas
Mas sentidas
Só minhas
E  de mais ninguém


Prefácio de vida
Num sono entediante
De uma vida sem graça
A espera da vida além da vida

Ah poeta
Dê asas ao teu dom
E (d)escreva o amor
Sem jamais o viver

Sois feito Moisés
Eleito por Deus
Conduzas teus leitores ao amor
Mas na terra prometida, não entres

Deixa que teus sonhos se refaçam
Em cada nova poesia
E entenda que o azul da cor do mar
Não passa de mera razão para sonhar

(Nane-18/08/2015)


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

SÓ UMA NARRATIVA

Meados de 1973.
Anos de chumbo
Militarismo predominando no país.
Pai, mãe e doze irmãos...uma casa com três quartos.
Espaço era só o que não tínhamos.
Uma aposentadoria.
Uma mudança de casa e de bairro.
Outra casa de três quartos.
Um do casal, outro dos homens, outro das mulheres.
Éramos dez irmãos então. 
Uma estava casada.
Dois outros moravam à parte.
Ainda faltava espaço, mas nos arranjávamos...
Uma segunda se casou.
Em casa agora somos onze.
Um casal e nove filhos...
A mãe batalhadora
Planta, colhe e nos faz vender.
O pai irresponsável
Recebe, viaja, bebe e gasta.
A cachaça embriaga
O pai perde o sentido
O filho perde a vida
A mãe soluça sua dor
Casa a filha, casa o filho
Duas outras casas se erguem ao lado
Espaço maior na casa velha
Aumenta a população no quintal
Agora de filhos e netos.
Casam mais alguns
Aumenta o espaço
Vão morar mais longe
Nem contato com os netos e sobrinhos
Finais de semana sem espaço
Tanta gente pro almoço
É festa, é feriado!
Outra casa é erguida
Uma, duas, sei lá quantas.
Cinco num quintal.
Tanta gente moradora...
A mãe envelhecida
Já não tem mobilidade
A horta deu espaço
Às casas e quintais.
Tempo passa e a família
Dispersa ao natural.
O pai perdeu-se na distância
A mãe caiu de cama.
São tantas as vozes em burburinhos
Gente que fala, que grita e que canta.
De treze agora somos doze,
Mais a mãe adoecida.
O filho, irmão, marido e pai
Adormece e não acorda mais.
Caçula furador de fila
Parte sem dizer adeus.
O quintal esvaziando
No seu dia a dia
Ainda mantém seu espaço cheio
Nos finais de semana. 
A mulher do filho se desfaz
No balcão de um bar.
Ninguém sabe seu destino
Até na pedra fria a encontrar.
Mas ainda vale a pena a churrascada
Em cada final de semana.
Verdade seja dita

Já não conta com a presença
Das vozes que antes eram ouvidas
E sobram espaços no quintal.
A doença maldita e silenciosa
Se apossa da filha costureira.
Anos a fio se passam
Numa luta desigual.
Até que ela cansada,
Parte no ano dos 7x1.
Quantas vozes silenciadas.
Quantas portas fechadas.
Pessoas de um mesmo núcleo
Tão separadas e caladas...
Ouço no silêncio
As vozes de outrora
De gente adormecidas
No vazio do quintal.
O espaço se encheu
Do vazio de uma história.
Lá fora só o latido
Dos cães ladrando na noite...
O marido da filha costureira
Foi ao seu encontro.
Mais um espaço sobrando...

Perdi a conta de quantos éramos
Mas hoje, no quintal,
Sobramos oito
Divididos em três casas.
Cada qual fechado em si...
Os lamentos das dores da mãe
É o mais constante dos sons.
Não sei se só eu escuto
Mas quando me concentro
Ainda ouço o meu nome
Chamado pelos adormecidos
Na escuridão do nosso quintal.
O tempo voa e não volta mais...


(Nane - 10/08/2015)