segunda-feira, 10 de agosto de 2015

SÓ UMA NARRATIVA

Meados de 1973.
Anos de chumbo
Militarismo predominando no país.
Pai, mãe e doze irmãos...uma casa com três quartos.
Espaço era só o que não tínhamos.
Uma aposentadoria.
Uma mudança de casa e de bairro.
Outra casa de três quartos.
Um do casal, outro dos homens, outro das mulheres.
Éramos dez irmãos então. 
Uma estava casada.
Dois outros moravam à parte.
Ainda faltava espaço, mas nos arranjávamos...
Uma segunda se casou.
Em casa agora somos onze.
Um casal e nove filhos...
A mãe batalhadora
Planta, colhe e nos faz vender.
O pai irresponsável
Recebe, viaja, bebe e gasta.
A cachaça embriaga
O pai perde o sentido
O filho perde a vida
A mãe soluça sua dor
Casa a filha, casa o filho
Duas outras casas se erguem ao lado
Espaço maior na casa velha
Aumenta a população no quintal
Agora de filhos e netos.
Casam mais alguns
Aumenta o espaço
Vão morar mais longe
Nem contato com os netos e sobrinhos
Finais de semana sem espaço
Tanta gente pro almoço
É festa, é feriado!
Outra casa é erguida
Uma, duas, sei lá quantas.
Cinco num quintal.
Tanta gente moradora...
A mãe envelhecida
Já não tem mobilidade
A horta deu espaço
Às casas e quintais.
Tempo passa e a família
Dispersa ao natural.
O pai perdeu-se na distância
A mãe caiu de cama.
São tantas as vozes em burburinhos
Gente que fala, que grita e que canta.
De treze agora somos doze,
Mais a mãe adoecida.
O filho, irmão, marido e pai
Adormece e não acorda mais.
Caçula furador de fila
Parte sem dizer adeus.
O quintal esvaziando
No seu dia a dia
Ainda mantém seu espaço cheio
Nos finais de semana. 
A mulher do filho se desfaz
No balcão de um bar.
Ninguém sabe seu destino
Até na pedra fria a encontrar.
Mas ainda vale a pena a churrascada
Em cada final de semana.
Verdade seja dita

Já não conta com a presença
Das vozes que antes eram ouvidas
E sobram espaços no quintal.
A doença maldita e silenciosa
Se apossa da filha costureira.
Anos a fio se passam
Numa luta desigual.
Até que ela cansada,
Parte no ano dos 7x1.
Quantas vozes silenciadas.
Quantas portas fechadas.
Pessoas de um mesmo núcleo
Tão separadas e caladas...
Ouço no silêncio
As vozes de outrora
De gente adormecidas
No vazio do quintal.
O espaço se encheu
Do vazio de uma história.
Lá fora só o latido
Dos cães ladrando na noite...
O marido da filha costureira
Foi ao seu encontro.
Mais um espaço sobrando...

Perdi a conta de quantos éramos
Mas hoje, no quintal,
Sobramos oito
Divididos em três casas.
Cada qual fechado em si...
Os lamentos das dores da mãe
É o mais constante dos sons.
Não sei se só eu escuto
Mas quando me concentro
Ainda ouço o meu nome
Chamado pelos adormecidos
Na escuridão do nosso quintal.
O tempo voa e não volta mais...


(Nane - 10/08/2015)

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